domingo, 8 de junho de 2008

Sonho - Um conto

Ela entrou em casa. Trancou a porta, como sempre. Não poderia deixá-la só encostada, ela, uma mulher sozinha.
Olhou para o ambiente que a cercava. Apartamento pequeno, predominantemente branco (pra não cansar, ela dissera, enquanto cobria a pintura alaranjada das paredes, com tinta branca perfumada), decoração alegre, almofadas coloridas. As cortinas de 'voil' balançavam levemente, dança provocada por um fio de vento que insistia em passar por uma pequena fresta da janela fechada. O quadro com as mulheres sem rosto, obra dela mesma, era a única coisa que enfeitava a parede. Televisão desligada, som mudo. Não costumava ficar sem música. Escolheu um CD: coletânea do melhor da MPB.
Na cozinha, um vaso com flores do campo, suas preferidas. Não tinham perfume, mas coloriam e alegravam a cozinha também branca (pra não cansar, ela dissera, enquanto tratava de organizar os utensílios, instalar o gás, ligar a geladeira, pendurar os armários aéreos).
O quarto, sempre com as janelas abertas, exalava um frescor quase primaveril. Era ali que sua vida descansava. Quando descansava. Todo branco (pra não cansar, dissera ela, enquanto montava os guarda-roupas e colocava as lâmpadas nas luminárias), dava uma sensação de maciez, quase de nuvem, na cama coberta por um grosso edredom estampado de delicadas e pequenas flores vermelhas, sobre ele, os travesseiros macios.
Incenso de cinamomo por todo o espaço. Mesmo apagado, exalava um perfume leve, que a fazia descansar.
Começou a preparar a janta, arrumou a mesa, atendeu ao telefone. Era Marília, lembrando do jantar na casa de Eduardo. Tinha esquecido completamente. Guardou os ingredientes da jantinha gostosa que iria fazer. Eduardo era melhor cozinheiro, e o jantar seria delicioso, com certeza.
Um banho, creme, secador de cabelo, delineador nos olhos (não gostava de muita maquiagem, nem precisava), batom cor de boca, a sandália de salto agulha que ela adorava, vestido. Ligou para o táxi. Desceu pelas escadas. Estava sem paciência para esperar o elevador.
Na rua, o táxi esperava. Não se atrasou. Nunca se atrasava para nada, embora esquecesse de muitos compromissos, principalmente se fossem referentes a documentos. Aí era um desastre. Mas não era o caso dessa noite. Aliás, o jantar foi esplêndido, Marília e Eduardo eram ótimos amigos. Riram muito, falaram da vida, choraram até...
Eduardo e ela levaram Marília para casa, depois ele quis acompanhá-la também. Já era tarde. Ela aceitou.
Subiram, tomaram um café que ele fez questão de preparar, e ela adorou o agrado. Riram muito, ainda. Eduardo fazia caretas como ninguém. Conhecia bandas das quais ela nunca tinha ouvido falar, mas eram interessantes.
Depois ele foi embora, querendo não ir.
Depois ela deixou que ele fosse, querendo que ficasse.
Já na cama, pensou no quanto seria bom permitir-se ser protegida, cuidada, paparicada. As paredes pintadas por ela estavam ali. Os armários montados por ela estavam ali. As cortinas colocadas por ela estavam ali. O chuveiro, o gás, as lâmpadas, estavam todos ali. E só o que ela queria era o direito de ser frágil.
Foi seu último pensamento, antes de adormecer.
08.06.2008 - 0h41min

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