Meus Contos, Meus Pontos, Meus Ítens








QUEM CONTA UM CONTO...CONTA


Um estalo de dedos e estava pronta. De novo. Como sempre. Vestiu-se sem pressa. Puxou o zíper do elegante vestido. Calçou as sandálias. Sorriu, ao lembrar da preferência dele por saltos altos.

Mulher de meia idade, ainda provocava suspiros, ao desfilar seus passos decididos e coluna ereta, pra onde quer que fosse seu destino. Não importava quantas outras mulheres, mais bonitas e talvez até mais interessantes, tivessem cruzado seu caminho; ela se sabia inesquecível. Não que isso provocasse qualquer alteração na sua conduta, mas era inegável que acrescentava-lhe uma aura de segurança, difícil de ser quebrada.

Espalmou no espelho a mão de dedos longos e finos, não para acariciar a própria imagem, mas para sentir o frio do vidro; talvez assim afastasse o suor, que já gotejava entre seus seios firmes. Ansiedade?

Desejou, sem queixas, que o tempo estivesse mais fresco.

Apanhou a bolsa e saiu.

À frente do prédio, encostado no carro, ar displicente, camiseta preta, jeans, botas, ele, sempre sério, não resistiu ao sorriso, quando ela apareceu. Tinham o poder de provocar, um no outro, reações pouco costumeiras. Ele, dono de uma tristeza que tivera um começo, mas parecia não ter fim, instantaneamente ficava feliz. Ela perdia, em questão de segundos, a segurança característica. Pensava ser boa o bastante, pra disfarçar esse primeiro momento de confusão interna, sempre que se encontravam. Pensava, mas não era. Ele sabia; e tal constatação alargava ainda mais o sorriso dele. Cinco anos mais jovem que ela, sofrera tantos açoites da vida, que as têmporas já perdiam a cor. Alto, olhava pra baixo, pra encontrar o olhar dela, que ele, carinhosamente, dizia sair de seus "olhos de photoshop".

Andaram de mãos dadas até o restaurante. Jantaram. Conversaram amenidades, porque mesmo os assuntos mais graves, quando um com o outro, se tornavam leves. E riram. E o brilho de todos os cacos de vidro viraram estrelas de diamantes.

(...)

A manhã seguinte encontrou os risos, as mãos dadas e as roupas dos dois, espalhadas pelo quarto de dormir.

A manhã seguinte acordou os risos, as mãos dadas, as roupas e os dois.

A manhã seguinte, antes de ser tarde, despediu os risos, as mãos dadas, as roupas e os dois, um do outro.

E virou lembrança.

Até o próximo estalo de dedos dele, dela ou da vida, que apronta, todos os dias, para todo tipo de gente, as mais incríveis surpresas. E alimenta, todos os dias, em todo o tipo de gente, as mais loucas esperanças.

06.02.2011


VIDRO

Madrugada.

Desde quando começara a preferir a noite? Não lembrava. Quando se perde o sono, vai com ele um pedaço bem grande da memória. De qualquer forma, agradava-lhe o som deste rótulo, em especial: notívaga; a imagem de alguém a vagar, sozinha ou acompanhada, mas a vagar, noite a dentro.

Aproveitou pra fechar as venezianas gastas e tragar um golpe de vento frio, típico de inverno que se recusa a dar lugar ao tempo quente.

Desceu.

O bar do hotel, frequentado por amantes das letras e da música, cheirava a perfume, suor, álcool e diferentes graus de solidão, misturados ao burburinho natural dos grandes grupos.

Acostumada ao ambiente, ria com um, dividia um verso com outro, comentava uma notícia qualquer, com um terceiro, cantarolava sozinha. Não parava. Conhecia a maioria dos presentes, e com eles dividia as noites em claro.

Chegou a pensar em briga, quando ouviu, de repente, o som de vidro quebrado. Esperou o barulho típico de socos e pontapés. Nada. Olhou em volta, procurando a origem, mas não a identificou, até porque ninguém, além dela, parecera ouvir o copo espatifar-se contra a parede. Mas acontecera. Prova disso era o reflexo da luz nos cacos, que jaziam, agora silenciosos, quase diamantes, junto ao rodapé.

E então ela ouviu.

Em alto e bom som, como se nenhum outro ruído houvesse, o soluço. Seus olhos seguiram na direção que os ouvidos indicaram, e lá estava ele: os olhos vermelhos, o rosto molhado, as mãos trêmulas. Chorava.

Ela não pensou em nada. Largou o copo de suco. Guardou na bolsa as notas e restos de poemas soltos, que rabiscara até o momento. Despediu-se dos mais próximos, e, sem pestanejar um segundo sequer, foi até ele. Limpou-lhe o rosto, ofereceu o braço como apoio e um ombro como consolo.

Nenhum dos dois sabia, mas essa noite mudaria todos os dias daí em diante. Os dela.

29.01.2011



IM-PREVISIBILIDADE


Ela andava sozinha pela rua escura. Não tinha medo. Há muito aprendera a se defender. Distante, o latido de um cão. E, de repente, vindo não se sabe de onde, um perfume diferente...

Ela manteve o mesmo passo tranqüilo, por nenhuma outra razão que não fosse a de chegar a seu destino, conforme o previsto.

Mas o previsível nem sempre acontece. Talvez algum deus menino esteja sempre atento e pronto para alguma travessura conosco, reles mortais. Pois foi assim que aconteceu:

O perfume tornou-se mais forte e, com ele, um roçar de vestes, muito próximo dela.

Um arrepio percorreu-lhe a espinha e ela chegou a pensar em apressar o passo, só por precaução. Não houve tempo.

No instante seguinte, uma mão forte segurava-lhe o braço. Sim, ela sabia se defender. Os anos todos de cursos de defesa pessoal já tinham lhe tirado de situações muito perigosas. Não agora. Ela simplesmente NÃO QUERIA se defender. De alguma forma, sem entender as razões, sentia não PRECISAR se defender.

Virou-se lentamente. O homem que a encarava vestia jeans rasgado, tênis sem os cadarços, camiseta incrivelmente branca e, absurdamente deslocado, na cabeça, um turbante.

Os olhos de um fitaram longamente os olhos do outro. Nenhuma palavra trocada. Nem um ai.

Ele estendeu a mão até o rosto dela e tocou-a, levemente. Ela retribuiu o gesto que considerou de uma sutileza quase infantil, dada a pressão quase inexistente da mão sobre a pele.

Depois ele virou-lhe as costas e já ia partir quando houve o tiro.

Atingido na nuca, caiu imediatamente. No ouvido, o grito dela. Não ouviria nada mais. Nunca mais.

Uma bala perdida encontrara a nuca do desconhecido.

Nada se descobriu sobre ele. Foi enterrado como indigente. Uma única pessoa acompanhou o féretro.



21.10.2008



PSICO - O CONTO

Ela não sabia onde estava. Perdera completamente a noção de espaço. Não sabia qual direção seguir nem qual pensamento escolher, tantos que se lhe nasciam ao mesmo tempo. Acreditava ser mais fácil se tivesse uma cabeça do tamanho de uma melancia gigante, ou se aproveitasse melhor o espaço do cérebro. Tanto espaço sem uso. Mas não era o caso. Os pensamentos eram um número maior que o que podia suportar. Escorriam-lhe cabelos abaixo, pesando-lhe nos ombros. Tão difícil controlar...

Ela não sabia mais contar as horas. Não tinha idéia dos próprios porquês. Sonhava com um pouco de sossego, e, ao mesmo tempo, recusava-se a evitar a energia que sabia ainda ter.

O sono a perseguia e a evitava, enquanto ela tropeçava nos próprios erros. Rareavam as oportunidades de acetos. Ela mesma buscava essa espécie desmedida de estado de alerta. Não queria perder nada. Perdia tudo.

Entrou num ônibus, escolhido por acaso, num ponto qualquer da cidade desconhecida. Saltou num bairro novo, quase deserto, onde abundavam construções. Procurou por quatro paredes erguidas; a figura mais próxima da proteção de que precisava agora. Não encontou. Contentou-se com três paredes inacabadas. Ruínas? Como ela...

No bolso direito da calça jeans de grife, uma folha de papel. Rabiscados nela um conto, uma crônica e um poema, os três com o mesmo título: PSICO.

Sentada no chão, sobre ela um teto de estrelas, entre os dedos um caco de vidro.

O mundo, aos poucos, ficando vermelho, viscoso, nublado, quente e distante. Perdendo a forma. Perdendo o instante.

Finalmente, o controle...

08.09.2008



VIÚVA NEGRA I


O vestido vermelho levemente colado ao corpo era mais que apenas um vestido vermelho levemente colado ao corpo. Era a tinta da escultura perfeita, viva e alegremente hipnotizante que transitava pela badalada festa literária.

Acostumada a tantos olhares de cobiça, procurava a raridade. Não poderia ser qualquer dos que flertavam abertamente com ela. Não gostava de facilidades. Apreciava o garimpo; a procura fazia o encontro final mais saboroso, pensou, enquanto passava a língua pelos já úmidos lábios vermelhos.

Os cachos também avermelhados escorregavam pelos brancos ombros nus, enquanto ela se movia por todo o espaço disponível. Sabia dos vários pares de olhos gulosos que seguiam seus passos seguros. Apesar de sentir-se lisonjeada, nenhum deles despertava seu interesse.

Gente inteligente, ambiente agradável, homens e mulheres bonitos, alegres, bem-falantes. Música. Poesia. Arte. Sem dúvida, um bom lugar para se estar.

Pediu uma taça de suco de tomate (tinha aversão ao álcool). Sentou-se em uma poltrona que permitia uma visão privilegiada do movimento na sala, e foi simpática com todos quantos se aproximaram dela e iniciaram uma conversa. Gostava da troca literária, embora percebesse, na maioria, outro tipo de interesse, que ela, delicadamente, dispensava.

Quando começava a sentir uma ponta de tédio, ele apareceu. Já tinham conversado em várias outras ocasiões. Ele sempre se afastara após alguns breves minutos em que externava sua admiração. Nunca passara disso.

Alguma coisa, porém, naquela madrugada em especial, soava diferente. Um grão de areia úmida caiu-lhe ao colo, no cumprimento trocado. Dois beijos. E ela reconhecia nele um espécime muito raro. Talvez o suficiente para permitir-se...

Ele ficou mais do que os costumeiros curtos minutos. Disse mais que da costumeira admiração. Ouviu mais também.

E tremeu.

E disfarçou.

E ela notou.

E dentro dela todos os instintos se eriçaram.

E ela tremeu.

E disfarçou.

E ele notou.

E ela não soube se os instintos dele se eriçaram, porque ele, educadamente, como sempre, despediu-se dela, e desapareceu entre os presentes...



O JOGO*

“(...)

Vivendo e aprendendo a jogar

Vivendo e aprendendo a jogar

Nem sempre ganhando

Nem sempre perdendo

Mas aprendendo a jogar...” *


Riu alto, sozinha, e a risada ecoou no apartamento vazio de qualquer outro movimento, que não o dela. Elis, morta, cantava pra ela, sem saber. Passeou pela idéia de um livro exclusivamente de poemas que versassem sobre o ‘jogo’. Considerarei a possibilidade, disse para si mesma, em voz alta, enquanto aspirava profundamente o cheiro do café forte, que acabara de passar.

Nunca se interessara por jogos. Desde criança, a única atração que via num baralho era a chance de brincar de ‘Memória’. Fora isso, nem mágicas a atraíam. Xadrez também era complicado demais. Fundia a cabeça, pouco acostumada ao raciocínio lógico. E também não havia a menor hipótese de se dar bem em qualquer jogo que exigisse destreza motora. Nem pensar!

Riu alto, novamente. Incompetente. Disse para si mesma, lembrando de todas as vezes em que tentara jogar bilhar. Divertira-se muito mas não conseguira encaixar uma única bola sequer, naquele ‘buraquinho’. Riu-se da própria ignorância quanto às nomenclaturas exatas. Não estava interessava nelas mesmo!

Mas o jogo da vida era diferente. Esse não perguntava, nem queria saber se o jogador gostava de jogos, ou se estava ciente das regras e todas as complicadas peças envolvidas. Nada disso. Esse já vinha embutido no ‘ato’. A concepção carregava, em sua mágica, 'O Jogo’, sem direito a manual de instruções.

Enquanto servia o café, pensou na última madrugada. A chuva torrencial, depois de longo período de estiagem, emprestara, então, à terra, um perfume de areia molhada, que fazia nascer na lembrança a imagem do beduíno. O mesmo cuja voz debruçara diante dela ternamente: “O jogo é uma aposta, olho no olho. Até onde apostar? Terá o jogador tanto cacife?”, depois dos dois beijos de despedida e antes de desviar dela o seu olhar. E ela não soubera como responder.

.

.

.

Sobre o tapete da sala, espalhadas desordenadamente, as mais de mil peças de um quebra-cabeças. No ar, além da voz de Elis e do cheiro do café, o perfume de um grão de areia úmido, ainda preso a um certo vestido vermelho.


*"Aprendendo a jogar", composição de Guilherme Arantes

**Dedicado ao sopro do deserto, que avalia a banca, antes de fazer a aposta.



O JOGO II - IMAGINAÇÃO
"(...)

Será só imaginação?

Será que nada vai acontecer?

Será que é tudo isso em vão?

Será que vamos conseguir vencer?

Nos perderemos entre monstros

Da nossa própria criação

Serão noites inteiras

Talvez por medo da escuridão

Ficaremos acordados

Imaginando alguma solução

P'rá que esse nosso egoísmo

Não destrua nosso coração.

(...)"*

Teve vontade de pão quente enquanto ouvia a canção do século passado. A padaria ficava a duas quadras do prédio onde morava. Chegava a sentir o cheirinho de pão fresco. Hummmmmm.... "Será só imaginação?", ele cantava. E não era só ele que se perguntava... não era...

Olhou pela janela. A previsão do tempo avisou sobre uma pancada de chuva, no final da tarde. O céu carregado de grossas nuvens negras. Vento forte. O dia muito abafado pedia um pouco d'água. Seria bem-vinda, pensou, enquanto calçava uma rasteirinha e jogava um vestido branco sobre a pele nua. Com tanto calor, não suportava nenhum tipo de tecido sobre a pele, dentro de casa. Tornou a olhar pela janela, calculou o tempo de ida e volta e concluiu que estaria em casa, com o pão quentinho, antes do temporal. Só o dinheiro e a chave, na mão. Saiu.

Quando atravessou a rua, sentiu os primeiros pingos de chuva grossa. Pensou em voltar, mas eles pareciam cair tão lentamente, que ela decidiu ir adiante assim mesmo. Aproveitaria para deixar que o vento refrescasse sua pele...

Uma quadra e os céus se abriram generosamente. Pensou em abrigar-se, mas, de repente, escolheu ficar. Literalmente. Ficar.

Já era tardinha, a maioria da vizinhança já voltara do trabalho e escola. Os poucos que ainda estavam na rua correram para as lojas e confeitarias. As luzes dos postes foram sendo acesas. Ela escolhera ficar.

A água ensopou o vestido instantaneamente, colando o tecido à pele. E ela ficou.

A água cobria-lhe por inteiro. Afastava a secura do dia, o peso do dia, o fogo do dia.

E ela ficou.

A água escorria por seus cabelos, pingava, abundante, por todo o seu corpo.

E ela ficou.

Nos ouvidos, a canção ainda tocava, mas diferente. Era a voz do al bedu que não perguntava, mas afirmava: "... a imaginação é o moto das nossas vidas... é o que nos faz continuar em frente".

Enquanto a chuva lavava o calor, pensou na porta, de início entreaberta, agora escancarada. Aberta para trás, sem travas, sem chaves, sem proteção alguma. Nada. Jamais estivera assim.

E ela ficou.

A chuva, assim como veio, passou.

E ela ainda ficou.

Té que o último pingo caiu-lhe na dobra do pescoço e escorreu, lentamente, por entre os seios firmes.

Agora ela podia comprar o pão quente, sentar no chão da sala e olhar, maravilhada, o quebra-cabeças montado pela metade, sobre a mesa.

"Será só imaginação?"



*"Será" - composição de Renato Russo



O JOGO III - VESTÍGIOS


Mas a vida não oferece suas rédeas pra gente, toda hora... ah, não mesmo! De vez em quando ela resolve assumir o controle e aí a gente pode espernear, a gente pode gritar, a gente pode chorar e dizer que não aceita, de jeito nenhum. A danada da vida dá de ombros e faz o que pretendia fazer. Nesse caso, soprar-lhe de volta as imagens das cenas vividas. Foi assim que aconteceu naquele domingo.

Ela pensava.

Não, não era aquele turbilhão de confusas sensações.

Ela sentia.

Não, não era uma vontade enlouquecida de estar com ele de novo.

Ela sabia.

Não, não era igual a nada que tinha vivido até então.

Ela percebia.

E ele?

Teria perdido, ele também, as rédeas da vida?
Sentada no chão, uma xícara de chá de hibiscus, bem quente, na mão esquerda; observava o quebra-cabeças. Passou o braço direito, lentamente, sobre a mesinha de centro, onde parte dele estava montado. As peças foram caindo, uma a uma, no chão, desprendendo-se das outras. Em camera lenta o mistério se refaria, pensou, esperançosa...

Mas a vida resiste. Não gosta de entregar assim fácil, o comando dos dias aos mortais e suas paixões, por isso deixou plantado no peito dela o grão de areia úmido. Um grão em cuja superfície estava gravada a noite em que o al bedu a tocara....

* * *

Recolheu as peças espalhadas e guardou-as na caixa. Organizou o ambiente e tratou de ocupar-se com coisas mais urgentes. Tinha muito trabalho atrasado para colocar em dia, também queria trocar de lugar alguns móveis, fazer uma 'limpa' em suas 'tralhas', livrar-se do que não queria mais, rasgar papéis antigos, recolher velhas fotografias, tentar encontrar os esboços de nu feminino, que tinha guardado num envelope qualquer, e agora não conseguia mais lembrar onde, nem porque, muito menos quando...

Mas a vida resiste...
Sobre a poltrona, no quarto, o vestido vermelho, amarrotado. Ficou ali, parada diante da poltrona. Não mexeu nele de pronto. Sobre a roupa, um punhado de pérolas soltas.

No grão de areia estava gravado o riso dos dois, enquanto recolhiam as pequenas contas espalhadas sobre a grande cama, e descolavam algumas do suor da pele um do outro. Passou a mão sobre a peça e nela sentia a força do homem que a havia ajudado a despir-se. "Quando aquele que toca o faz, desarma-se demasiado, e aí se percebe muito da personalidade e do moto dele". Quanto da sua personalidade tinha sido exposta? O que ele sabia a respeito dela agora? E ela, até onde teria alcançado esse homem?

Um frio percorreu-lhe a espinha e apesar de todos os esforços para não pensar, as lembranças vinham aos borbotões, desordenadamente, sem o menor respeito à cronologia dos fatos. Recortes do acontecido. Partes de ditos beijados: "Já notaste que não precisas de muita força pra conseguires o que queres, né?" .
E o grão de areia rolando entre os dedos dela. Sorrindo; com o sorriso dele...



O JOGO IV - LAÇO

No banheiro, não acendera as lâmpadas. Preferira a luz das velas perfumadas, que espalhou em pontos estratégicos. O vapor, a luz difusa, o perfume no ar, emprestavam ao ambiente o tom de leveza que ela tanto apreciava. O som da água quente do chuveiro confundia-se com o da chuva que tamborilava, festiva, no telhado. No apartamento pequeno, além das tantas águas, uma mesma canção tocava, ininterruptamente. No coração, além das tantas cicatrizes, um mesmo nome se gravava mansamente...

Todas as letras povoavam o universo dela:

Todas as letras do nome dele

Todas as letras das falas dele

Todas as letras das canções que o traziam para ela

Todas as letras do universo dele.

Enrolou os cabelos molhados na toalha felpuda, vestiu o roupão e quase pode sentir de novo o abraço macio do beduíno. Diante do espelho, parou. Olhou-se longamente, perdida entre as névoas provocadas pelo calor local. Névoas que embaçavam sua imagem, tanto quanto era pouco visível agora a última ferida no coração. Escreveu o nome dele no espelho, com o dedo, podendo ver-se melhor nos vãos das letras traçadas. Sorriu para si mesma e para a metáfora. Ela, uma mulher de pouco mais de quarenta anos, escrevendo o nome de um homem no vapor do espelho. Sorriu de novo, agora com uma pontinha de dor de saudade.

Não, eles não deixaram de estar juntos depois da festa e do que a sucedeu. Aliás, estavam tão juntos quanto no momento em que foram um só. Ainda assim ela sentia saudade. E sentir a deixava mais forte, alegre, com maior energia, e enorme fome de vida.

Mergulhada em reflexões, não ouviu o telefone. Secou os cabelos, vestiu a calça jeans “velha de guerra”, a blusa branca, curta, que deixava só o umbigo de fora, apanhou o cinto com detalhes em pérolas minúsculas, mas ficou com ele nas mãos. Não, não usaria as pérolas. Uma rasteirinha, maquiagem leve, quase imperceptível. Batom cor de boca, a bolsa. Ia saindo quando percebeu que a secretária eletrônica piscava. Parou para ouvir o recado. “Somos diferentes, sabia?”. A voz dele.

As pernas tremeram. Quando é que ele ligara, se ela não tinha saído de casa até agora? Verificou a hora no aparelho. Droga, porque não ouvira a campainha chamando? Voltou. Ouviu de novo. Três vezes. “Três beijos... daqueles...”. E ela teve que fazer força pra lembrar o que ia, mesmo, fazer na rua. Saiu, ainda ouvindo a voz dele. Nem o barulho infernal da cidade, em pleno horário comercial de dia útil atrapalhou a voz dele, dentro dos ouvidos dela. Tão fundo que ecoava por todo o seu corpo.

Sim, eles eram diferentes. Sabiam que alguma coisa muito forte os aproximara. Sabiam que essa mesma coisa muito forte os mantinha juntos. Sabiam que a união dos corpos tinha sido muito mais que simplesmente um ato de prazer. Sabiam que não havia como evitar. Nada. Nem queriam.

No Shopping, comprou flores do campo, para o vaso da sala, e incenso de canela. Deliciou-se com uma exposição de fotografias antigas. Encontrou uma amiga de infância e riram muito, lembrando das barbaridades que faziam então... Mais a outra, que ela. Ela sempre fora meio “bocaberta”.

Mais tarde, enquanto fazia um lanche, com os pensamentos girando em torno do al bedu, e sentindo-se plena de satisfação, aproveitou para escrever mais algumas linhas do romance que pretendia publicar no próximo ano. Um capítulo com o cheiro do beduíno... E começava assim:

Na despedida, a saudade já começou a doer nos dois. Não conseguiam deixar de se olhar. O tempo juntos fora tão precioso que merecia ser gravado na pedra. Mas como gravar algo tão subjetivo? Como registrar um momento inenarrável? Diante da impossibilidade de expressar o que ia dentro deles, dançaram. No meio da rua. Sem música. Sem importar-se com os transeuntes. Sem importar-se com nada, além do desejo de eternizar o momento de qualquer forma fora do comum. Eles eram diferentes. E sabiam. Os olhos dele presos aos dela. As mãos dela presas às dele. A vida de um soprando na vida do outro. O dia, com gosto de aniz.

Fechou a agenda antiga e sentiu a dor aguda da saudade “... me faz encher o peito de sensações”.

Precisava voltar para casa. Ele tornaria a ligar, ela sabia.



O FIM DO JOGO V

Cansada, entrou em casa quase desanimada. Precisava de um banho. O dia fora longo. A edição do último romance estava atrasada e ainda tinha um quadro de nu feminino por terminar.

Foi tirando a roupa enquanto se dirigia ao banheiro. Calor insuportável. Água, precisava de água. Passou pela cozinha, um cubo de gelo na nuca, na testa, no pescoço. Divertiu-se sentindo-o derreter na pele. Não sabia estar tão quente assim. Riu alto, e a risada gostosa ecoou pelo apartamento. Hummmm... silêncio muitos decibéis acima do limite pode me deixar surda, pensou, irônica, enquanto procurava uma canção apropriada para o momento. Escolheu “Água”*, composição de um talentoso artista pernambucano, Glauco César, amigo seu. Era disso que ela gostava. Ousadia. Diferença. Criação. Ah, a vida dela toda girava em torno do belo.

Abriu o chuveiro, cantando junto a canção que escolhera.

Água. O al bedu fora o oásis no deserto dela. Sorriu. Brincou com o líquido levemente morno do chuveiro, enquanto lembrava dos cabelos dele. Curtos. Do ar sério e compenetrado dele. Da serenidade dele. Serenata. Pensou em escrever, mais tarde, um poema para esse homem. Apetitoso pescoço. Braços que a seguravam firme, sem forçar. Não precisava. Ela largava o corpo todo no abraço dele. Ela era dele.

Assim refrescada, assim molhada, assim nua, saiu do banheiro. Não se importava com os rastros dos pés dela, no chão. Eram só pegadas na areia do deserto que ficara pra trás.

Quando jogava um vestido leve sobre o corpo, assustou-se com a campainha do telefone. Atendeu ainda em devaneios. Mas...

era ele

beduíno sussurrante

dono de dunas

de areia escaldante

no corpo dela

Depois da rápida conversa, correu...

Para a porta

Porque ele,

O beduíno,

Já subia

As escadas

Ele sorria um sorriso de menino em peito largo de homem. Ah, a vida dela toda girava em torno do belo...

Cozinharam juntos. Jantaram juntos. Lavaram a louça juntos. Na sacada minúscula, ela sentou no colo dele. E olharam, juntos, a noite. Trocaram suas histórias. Brindaram, com suco, juntos. Riram. Escreveram. Criaram. Nasceram. Juntos. Quase manhãzinha, acompanharam o giro da Terra, pra ver o Sol, juntos. E concordaram que já era hora de irem para a cama. Juntos.

E se amaram. E nem os mais perfeitos falsificadores seriam capazes de imitar a unidade que existia entre ela e o al bedu.

Lá fora, a vida rolava faceira as ladeiras da vida ligeira que enrola o novelo de lã do tempo gasto ou perdido invejado ou desperdiçado ou abandonado ou cobiçado invejado diluído estilhaçado entre os vidros dos automóveis que passam invejam que passam que passam invejam que pesam e passam invejam e não pensam e passam e pesam invejam e passam e passam e passam invejam e esperneiam e passam e passssss

Cá dentro, um quebra-cabeças dentro de uma caixa. Montado. Inteiramente montado.

Cá dentro, um grão de areia, um romance, um mistério desvendado.

Cá dentro, uma pérola presa à manta amassada aos pés da cama.

Cá dentro, toda a paixão que há no mundo.
“Ter você é um sonho...” ... É... Ter você... É...



Terminada a escrita, nos primeiros 10 segundos do dia 01.08.2008










INCONSCIÊNCIA

Anoiteceu. Na televisão, os noticiários de sempre: sangue, sangue, sangue. Assistia sem ver. O dia fora duro, pesado mesmo. As pernas doíam. As ancas doíam. O peito doía. Não encontrava jeito no sofá da sala. A barriga protuberante incomodava. Decidiu ir para a cama mais cedo; descansar um pouco faria bem. Despediu-se do marido sem maiores comentários, já que não queria que ele percebesse a tensão, evidente em sua voz.

Adormeceu com relativa rapidez, depois da oração. Não teve sonhos, apenas uma dor aguda, cortante, na altura do braço esquerdo. Depois dela, um profundo silêncio e a nítida impressão de que toda a sua existência, dali em diante, se movimentaria em câmera lenta.

As sirenes. Os gritos. Confusão. Barulho ensurdecedor...

Acende a luz! Não! Apaga essa luz! Sem stress, sem stress! Calma, vai dar tudo certo! Respira... Isso... Muito bom! De novo. Mais fundo. Assim... Quanto tempo ainda? MEU DEUS, NÃO VAI DAR, NÃO VAI DAR! ESTAMOS PERDENDO! OS SINAIS ESTÃO MUITO FRACOS!

Um choque, um gemido e o corpo todo estremecendo. VOLTA! VOLTA! DE NOVO! ALGUÉM ESTANQUE O SANGUE! ALGUÉM CALE ESSA MULHER!

A vida escorrendo para fora dele...

O que houve? Como aconteceu? Alguém ouviu alguma coisa? Discutiram? Não toquem nas evidências! Por que você fez isso? RESPONDE, MULHER, RESPONDE!

A camisola empapada do sangue alheio. As algemas machucando-lhe os pulsos. E o corpo do marido, inerte, sendo levado já sem vida, para longe dela. Jamais responderia.


(2004)
 
 
PROMETO QUE TE LEVO AO PARAÍSO. ACEITA?

A cantada soou falso, inclusive para ele. Temeu que o longo silêncio precedesse a negativa. Por que não? Ahá! Funcionara! O que a teria levado a aceitar? Seriam seus lindos olhos verdes, seu cheirinho de alfazema (todas ficavam encantadas) ou o sorriso muito alvo, aberto, sincero mesmo, que desarmava qualquer defesa? Talvez fosse tudo junto, mas isso agora não tinha importância. Precisava levá-la ao paraíso. Cumprir promessas era ponto de honra para esse empresário bem sucedido. Levava a sério seus compromissos. Cumpria cada palavra exatamente como fora proferida - à risca! Não era à toa que o mundo dos negócios o reconhecia como alguém confiável. Sua palavra valia como documento assinado, com firma reconhecida. Nunca falhara. Nunca falharia. Preparou o material para a grande noite. Seria única para sua escolhida, o que aumentava a excitação que sentia.

Ela não era bonita, não tinha nenhuma graça, nem era inteligente. Não chamava atenção com seu tipo físico muito miúdo, quase apagado. Não era dada a frases de efeito - nem saberia usá-las. Se divertia vendo a diversão dos outros. Não lia muito, o que restringia os assuntos; ouvia pouca música e não gostava dos noticiários de TV. Pra quê? Só falam de violência mesmo! Prefiro não saber.

O encontro com aquele homem tão cheiroso fora inesperado. Que susto! Ele, de repente, aparecera do nada, convidara para um suco de laranja. "Desculpa não te oferecer uma cerveja; é que não bebo, então não ofereço álcool. Mas, se preferires..." Ela negara, claro, até teria preferido a cerveja, mas disse que adoraria um suquinho. Nem ouviu o que ele dizia,encantada que estava com toda a situação. Quis parecer moderna ao aceitar a cantada óbvia, pois acabara mesmo de conhecer o paraíso, ao dar com esse homem, bem na sua frente, dizendo-lhe coisas que ela não alcançava e nem fazia questão de. O mundo podia acabar naquele momento; ela não se importaria. Mas não, ele insistia em mostrar-lhe o paraíso... mais tarde. Quem, em sã consciência, perderia uma oportunidade dessas?

À hora combinada, lá estava ela. Fizera o possível para dar um jeito no cabelo rebelde. Pouco acostumada com os apetrechos de maquiagem, acabara por provocar pequenos borrões aqui e ali. Talvez ele nem percebesse. Ele. Esquecera de perguntar-lhe o nome, ou de prestar atenção quando "ele" se apresentara. Perguntaria mais tarde. Agora ouvia sua voz rouca dizer-lhe que estava perfeita. Não entendeu porque ele tirou um para de luvas de borracha de uma grande gaveta. Talvez estivesse acostumado a preparar o jantar usando luvas (Que homem, meu Deus! Que homem!)Aumentou o volume do som, pôs a mesa, perguntou alguma coisa que ela não ouviu; movimentou-se bruscamente, de um jeito que ela não entendeu; apanhou uma grande faca para cortar carne - uma carne que ela não viu.

E, de repente, o paraíso era ali e ela não pôde participar do jantar. Que pena. Mas conhecer o paraíso era mais importante.

22.10.2004